31.1.07

Do livro das Oferendas...




Heiner Müller (1929-1995)











A morte de Séneca

para Maria João C.


Que pensou Séneca (sem o dizer)
Quando o capitão da guarda pessoal de Nero mudo
Tirou da couraça a sentença de morte
Selada do discípulo para o mestre
(Tinha aprendido a escrever e selar
E a desprezar todas as mortes em vez
Da própria: regra de ouro de toda a arte da política)
Que pensou Séneca (sem o dizer)
Quando proibiu de chorar os convidados e os escravos
Que tinham partilhado com ele a última refeição
Os escravos no topo da mesa AS LÁGRIMAS SÃO ANTI-FILOSÓFICAS
TEMOS DE ACEITAR O QUE FOI DECIDIDO
E QUANTO A ESTE NERO QUE MATOU
A MÃE E AS IRMÃS PORQUE É QUE ELE
HAVIA DE ABRIR UMA EXCEPÇÃO PARA O SEU MESTRE PORQUÊ
PRESCINDIR DO SANGUE DO FILÓSOFO
QUE NÃO LHE ENSINOU A DERRAMAR SANGUE
E quando mandou que lhe abrissem as veias
Primeiro as dos braços e à mulher
Que não queria sobreviver à sua morte
Com um corte feito por um escravo provavelmente
Também a espada sobre a qual Bruto se deixou cair
No fim da sua esperança republicana
Teve de ser empunhada por um escravo
Que pensou Séneca (sem o dizer)
Enquanto o sangue lento de mais abandonava
O seu corpo velho de mais e o escravo obedecendo ao senhor
Abria também as veias das pernas e da dobra dos joelhos
Murmúrio com as cordas vocais já secas
AS MINHAS DORES SÃO PROPRIEDADE MINHA
A MULHER QUE VÁ PARA O QUARTO AO LADO QUE VENHA O ESCRIBA
A mão já não conseguia segurar o estilete
Mas o cérebro continuava a trabalhar a máquina
Produzia palavras e frases anotava as dores
Que pensou Séneca (sem o dizer)
Entre as letras do seu último ditado
Deitado na otomana do filósofo
E quando esvaziou a taça o veneno de Atenas
Porque a morte se fazia ainda esperar
E o veneno que a muitos ajudara antes dele
Só podia escrever uma nota de pé de página no seu
Corpo já quase sem sangue mas não um texto em letra de forma
Que pensou Séneca (finalmente sem fala)
Quando foi ao encontro da morte no banho de vapor
Enquanto o ar lhe dançava diante dos olhos
O terraço escurecia de um confuso bater de asas
Provavelmente não de anjos a morte também
Não é anjo no tremular das colunas ao reencontrar
A primeira folha de erva que tinha visto
Num campo perto de Córdova alta como árvore nenhuma

27.1.07

Do Livro das Oferendas...



Rudolf Leonhard (1889-1953)

A árvore

para a Electra


Como a árvore que além se ergue
sobre esta terra

tão leve e cheia e certa
de folhagem,

tão de luz cheia,
tão viva ao vento,

tão bem plantada,
tão bem crescida,

tão integrada,

assim hás-de tu estar,
assim estás tu

sobre esta terra.



Ingeborg Bachmann (1926-1973)



Vasto é o mundo...

para a Cristiana


Vasto é o mundo e os caminhos das terras que vi,
e muitos os lugares, e a todos conheci;
vi todas as cidade que aos pés das torres se estendem,
os homens que virão e os que já se despedem.
Vastos eram os campos de neve e de sol,
entre carris e estradas, entre a montanha e o vale.
E era vasta a boca do mundo e cheia de vozes no meu ouvido
e ditava-me, ainda noite, os cânticos do mundo dividido.
Bebi de cinco copos o vinho, de um só trago,
quatro ventos, em sua casa mutante, secam-me o cabelo molhado.

A viagem chegou ao fim.
Continuo amarrada a tudo o que é distância, inteira,
mas nenhum pássaro me levou para lá da fronteira,
nenhuma água, das que correm para a foz,
arrasta o meu rosto, que os olhos no chão traz,
arrasta o meu sono, que não quer ser levado...
Sei que o mundo está mais perto e está calado.

Por trás do mundo uma árvore haverá
com folhas feitas de nuvens
e uma coroa que de azul se tece.
Na sua casca de fita vermelha de sol
o vento grava o nosso coração
e com orvalho o arrefece.

Por trás do mundo uma árvore haverá,
nos seus ramos um fruto,
e com casca de ouro se vem mostrar.
Vamos olhar para á,
quando ele, no outono do tempo,
para as mãos de Deus rolar!

25.1.07

Do Livro das Oferendas...


Husain Ibn Mansur al-Halladj (Irão, ca. 857-922)




para Andreia S.

Oh, alma, és tu que tens de buscar a tua consolação –
A glória está na solidão e na ascese!
Pensa no fulgor cujo nicho é a revelação mística, transfiguração.
Uma parte da minha parte pensa na Minha parte,
O meu Todo aspira ao Todo do Meu Todo.

***

Eu sou aquele que amo: Ele, aquele que amo.
É eu – dois espíritos, mas num só corpo.
E quando tu me vês, viste-o a ele,
E quando o vês a ele, vês-nos aos dois.


para a Cristina P. S.

Tenho um amigo que visito em segredo,
E está presente; ausente, porém, da vista.
Não verás como lhe dou ouvidos
Para apreender o que ele me diz.
Pois são palavras sem forma, sem discurso,
E também não se parecem com os sons das vozes,
Como se eu, ao falar-lhe, falasse em espírito,
Através da minha essência, comigo, sem poema
Presente, ausente e longe e distante,
Assim ele prescinde de atributos,
Mais próximo do que a certeza da imagem,
Mais escondido que a luz das intuições.



para a Maria de Lourdes

Quando os corcéis da distância te afligirem,
E o desespero te quiser roubar a esperança,
Toma na mão esquerda o escudo da humildade
E na direita aperta a espada do pranto;
E tem cuidado, ah, tem cuidado, sê temente.
Dá atenção à tirania escondida.
E se a divisão, nas trevas, de ti se apossar,
Vai à luz da vela da paz interior
E fala ao amado: «Aqui vês a minha miséria –
Que a tua misericórdia me perdoe antes ainda do encontro.»
E no amor: não te separes do teu amigo
Antes de o teu desejo ter sido satisfeito.


para a Ricardina

Vi o meu senhor com os olhos do coração
E disse: «Quem és tu?» Ele disse: «Tu.»
Para Ti, o Onde não tem nem Onde nem lugar,
Quando de Ti se trata não há lugar para o Onde.
A imaginação não tem de ti imagens
Para poder reconhecer: Onde estás Tu?
Tu és aquilo que abarca todo o Onde
Até ao limite do Não-Onde –– mas, onde estás Tu?

24.1.07

Do livro das oferendas...


Emily Dickinson (1830-1886)


para a Elisa

Glória, doce bem, mais doce
Para quem nunca teve glória.
Para saber o que é um néctar
Muita dor é necessária.

Nem um, no exército púrpura
Dos que hoje levaram a bandeira,
Tem clara definição
Da vitória verdadeira

Como o vencido, a morrer,
Em cujo interdito ouvido
Os sons do triunfo, ao longe,
Se esvaem, em claro gemido.

******************

Flores – se houver alguém que possa
O êxtase definir,
Meio devaneio, meio espanto,
Com que a flor o homem humilha,
Se alguém encontrar a fonte
De onde as contra-ondas descem,
Dou-lhe as margaridas todas
Que na encosta florescem.

Inflamais o rosto apenas
Por um simples seio como o meu.
Borboletas de San Domingo,
Cruzando o purpúreo céu,
Têm um sistema de estética
Muito superior ao meu.





para a Lúcia

Esta é a minha carta ao mundo
Que a mim nunca me escreveu –
Simples novas que a natureza,
Terna e majestosa, contou.

Sua mensagem vai cair
Em mãos que não verei daqui;
Por amor dela, irmãos, fazei
Um juízo amável de mim.

*******************

Há uma incidência de luz
Nas tardes invernais,
Que oprime, como a pesada
Música de catedrais.

Traz-nos a ferida dos céus;
Não vemos a cicatriz;
Vemos a diferença, dentro
Do que a palavra nos diz.

Ninguém lhe ensinará nada,
Traz selo: desesperança –
Imperial aflição
Que do ar nos alcança.

Se chega, a paisagem escuta,
Calam-se as sombras; se parte,
É assim como a distância
No olhar da Morte.

21.1.07

Do livro das oferendas...

Bertolt Brecht (1898-1956)


Ouve quando falas!

para o Pipo


Não digas muitas vezes que tens razão, professor!
Deixa que o aluno o reconheça.
Não puxes de mais pela verdade:
Ela não aguenta.
Ouve quando falas!



Dia quente

para o Paulo Andrade


Se viesse uma aragem
Eu podia içar uma vela.
Se não houvesse vela
Fazia uma com estacas e lona.


Dia quente. Com a pasta aberta sobre os joelhos
Estou sentado no alpendre. Um barco verde
Começa a distinguir-se através do salgueiro. À popa
Uma freira gorda, cheia de roupa. Diante dela
Uma pessoa de certa idade em fato de banho,
provavelmente um padre.
No banco do remador, remando com toda a força,
Uma criança. Como nos velhos tempos!, penso,
Como nos velhos tempos!

**

Remar, conversar

Cai a noite. Passam, deslizando,
Dois barcos articulados. Em cada um
Um rapaz nu: lado a lado remando,
Conversam. Conversando,
remam lado a lado.



Canções de amor

para a Sandra


I
Quando depois te deixei
E cruzei o dia
Só vi, quando a ver comecei,
Rostos de alegria.

E desde essa noite – aquela
Em que estás a pensar –
A minha boca é mais bela
Mais ligeiro o andar.

São mais verdes, desde que assim
Estou, bosque e campina,
E a água que cai sobre mim
Mais fresca e cristalina.

III
Sete rosas tem a roseira
Seis leva-as o vento
Uma fica, a derradeira,
P'ra me dar alento.

Sete vezes te chamo, sete,
Seis podes não responder
Mas à sétima, promete
Que vais aparecer.

IV
Meu amor deu-me um raminho
Com folhagem já morta.

Já o ano chega ao fim
Já o amor bate à porta.

19.1.07

Do livro das oferendas...









Wolfgang Bächler (1925– )



O fruto

para a Daniela O.


Ontem fui ao céu,
trouxe a lua nos braços
e cobri com ela as maçãs na mesa.
Só levemente se mexeu,
no seu mundo de luz e de tristeza.
Parti-a em pedaços.

Na taça azul apenas resta
do ouro a cinza da fogueira,
e as chagas na mão,
como despojos da noite de festa.
Na parede, ainda um leve clarão
gravado na madeira.


Raquel

para Ilda David'


«Gardez cet objet précieusement!»
disse Vincent van Gogh a Raquel,
a quem tinha oferecido a sua orelha.
Busquei em vão aquela «Maison de la tolérance»
número um da rue du Bout-d'Arles,
na qual, segundo a crónica, isso se passou.

Ao meio-dia encontrei Raquel.
Bebaixo dos ciprestes negros
de Aliscamp, dos campos elíseos,
estava sentada sobre a tampa partida
de um sarcófago romano.
Escaravelhos saíam-lhe dos dedos,
subiam-lhe pelas coxas nuas.

No seu regaço, imaculadamente branca,
estava uma enorme orelha,
de concha profunda e ensombrada.
Através das garras inclinadas das pestanas
os olhos tinham um brilho tão ardente
que as piteiras em frente começaram a arder.

Dei então pela fonte.
Removi a pedra do poço:
as ovelhas de Labão vieram beber.
Aberta contra o céu, e longe,
é a casa da tolerância,
e imortal Raquel,
que não quer ser consolada.


Evasão

para a Lou


Evadir-me
das cercas de palavras,
das cadeias de frases,
dos sistemas de pontos,
dos entre-parênteses,
das molduras das miragens narcisistas,
das vírgulas, dos traços de união
_____ a envolver desconexões
evasivas, diluídas _____
evadir-me
para a liberdade do silêncio.


Jornada

para a Teresa Belo


De manhã filtro a água.
Ao meio-dia corto o vento,
revolvo a terra,
ponho a mão no fogo,
enterro a cabeça na areia
e leio o jornal.

À tarde penduro nuvens
no céu demasiado azul
e deixo que chova e escrevo.
Não me é possível lançar a minha
escrita contra o Sol. Apenas posso
passar-lhe por baixo.

Quando não vem a minha companheira,
abro a porta da varanda, à noite, e trago
a Lua para o meu quarto.
E, como todos os que nela se refugiaram,
também eu não consigo
aquecer o frio astro.
Mas sempre me atraiu
o desafio do impossível.


Folhas caídas

para Vanda P.


Não me canso de ver cair as folhas.
Amo o momento da queda,
do cair dos ramos negros,
do pairar entre copa e raiz,
entre verão e inverno,
amo o vento que peneira as árvores,
até que larguem a última folha,
amo a queda sobre a terra.

E piso as folhas caídas,
como se fossem os meus manuscritos,
as folhas rasgadas dos meus livros,
calco-as, atravesso essa maré,
gozo a ouvi-las estalar e rumorejar,
atravesso esse mar de árvore para árvore,
abraço as formas nuas.

Não há já sinais de flores, de cogumelos.
Apenas folhas que cobrem o chão.
Nas árvores não se vê nenhum deus,
nem raparigas, nem crianças, nem animais.
Também os pássaros já voaram para o calor.
Apenas os ramos despidos se erguem
para o céu fechado,
os galhos nus, os pensamentos nus,
sem adereços e de contornos nítidos.

18.1.07

DO LIVRO DAS OFERENDAS


As versões que se seguem, como já as de Rilke com que iniciei este «Poço de Babel», provêm de um conjunto de traduções de poesia que há poucos anos ofereci a amigos e amigas de uma causa comum. São quarenta e cinco poemas (incluindo os de Rilke já aqui inseridos), de várias épocas e línguas (poetas alemães, mas também místicos como Al Halladj ou Hadewijch de Antuérpia, e Emily Dickinson). Depois, iniciarei uma nova série em que irei dando a conhecer algumas centenas de traduções inéditas do alemão – a (quase) única língua de que traduzo poesia –, do século IX até hoje.



Reiner Kunze (ex-RDA, 1933– )

Desculpa

para Wagner Schwartz


Uma coisa é uma coisa
auto-suficiente

Supérfluo
o sinal

Supérflua
a palavra

(Supérfluo
eu)



Gottfried Benn (Alemanha, 1886-1956)

Março. Carta para Merano

para a Vina


Guardai, guardai as flores para quando eu
vier, esparzi então a espuma e o mar,
amendoeiras, forsítias, sol sem véu –––
ao vale seu brilho, ao eu o seu sonhar.

Eu quase inteiro, no fundo só fragmento,
eu sem essência, também sem fulgor,
presa fácil das horas de lamento;
seu nome, entregou-o ao esquecimento,
só às vezes o lembra, sem vigor.

E assim vai indo – vinde, flores, só quando eu
chegar. Eu busco, mas ando perdido –––
Ah, viesse ainda o reino, o do céu,
a sorte do instante conseguido!

17.1.07


AINDA RILKE

Umbral

para Vania





Quem quer que sejas – ao cair do dia
sai do quarto, onde nada há que não vejas;
antes do longe, a casa é a última vigia:
quem quer que sejas.
Mal consegues que teus olhos cansados
se libertem da soleira já gasta;
com eles ergues, negra, esguia, em alongados
gestos contra o céu, a árvore: e a si se basta.
Fizeste o mundo. E ele é grande, lembrando
uma palavra que, muda, amadurece.
A tua vontade entende-o. Mas já esses
teus olhos docemente o vão deixando...

(De: Das Buch der Bilder / O Livro das Imagens I/1)


Rainer Maria Rilke

P O E M A S










O legente
(Der Lesende)


para Augusto Joaquim

Há muito tempo, desde que a tarde se ouvia
Com o murmúrio da chuva nas janelas, eu lia.
O vento lá fora, já o não escutava:
O meu livro pesava.
Como se fossem rostos, as folhas sob o meu olhar
Escurecem de tanto pensamento
E, envolvendo a leitura, avolumava o tempo.
De súbito desce sobre as páginas um fulgor,
E em vez de confusas palavras - um tormento -
Há em todas só... noite, noite só, a nascer.
Não olho ainda para fora, mas já as longas
Linhas se desfazem, e as palavras rolam
Do fio que as liga, vão para onde querem...
E então eu sei que há céus sem fim
Sobre o esplendor e a plenitude dos jardins;
O sol teve de nascer mais uma vez. -
E agora é verão e noite o horizonte:
O que andava disperso em grupos se une,
Poucos, e há gente pelos caminhos escuros,
E longe, estranhamente, como se outro sentido
Tivesse, ouve-se o pouco que ainda acontece.

E ao levantar do livro o olhar agora,
Nada me é estranho, tudo tem grandeza.
O que aqui dentro eu vivo, está lá fora,
E aqui e lá não tem limite o mundo;
Só eu me teço mais com tudo isso,
Quando os meus olhos se ajustam às coisas
E à grave singeleza dessa gente -
O mundo cresce então, num golpe de asa.
O céu inteiro o abraça, é o que se sente:
E a estrela d' alba é como a última casa.

(De: Das Buch der Bilder / O Livro das Imagens, I/1)


Torso arcaico de Apolo

para Mauro A.

Nunca vista, a cabeça é um vazio
Com olhos cavos, a amadurecer.
O torso, esse é um candelabro a arder
Em que o olhar, suspenso de um desvio,

Mantém o brilho. Senão, não te cegava
Aquela proa do peito, nem o aviso
Leve das coxas levaria o sorriso
Àquele centro que a semente guardava.

Senão, seria pedra informe e ausente
Sob os ombros caídos, transparente,
Sem o brilho da pele de fera ferida;

Não sairia de si, estrela em fulgor:
Tudo nele vê, te está a olhar.
Tens de dar novo rumo à tua vida.

(De: Der Neuen Gedichte anderer Teil / Segunda Parte d' Os Novos Poemas, 1908



As cinco cartas de Mariana Alcoforado

para V.

Não nos faltam, nem notícias nem rumores da vida dos sentimentos. Mas só os vemos naqueles breves momentos em que eles emergem do rio do destino, ou — com um pouco mais de serenidade — quando eles vão vogando à superfície, mortos, deitados de lado.
Não terá sido isso que proporcionou às Cartas Portuguesas a sua reputação ao longo dos tempos? O facto de nelas acontecer um grande sentimento, como que por milagre, fora do destino, e visível, visível até muito longe, inesquecível?
Quando é que alguém terá tido oportunidade de ver assim crescer o amor? Onde é que já existiu um sentimento com tal força e entrega que se não tivesse logo afundado, transformado, ou que, regressando sempre com novas máscaras, não nos tivesse confundido? A arte das mais célebres mulheres amadas consistia precisamente em manter os seus sentimentos abaixo da linha de água; os seus retratos trazem por vezes até nós aquele sorriso estranhamente fechado, espécie de lastro para os sentimentos emergentes, para os obrigar a afundar-se e descer até ao fundo do destino.
Como deve ter sido diferente o sorriso de Mariana Alcoforado! Não temos memória dele e também não sentimos necessidade de ver o seu rosto, porque o que de mais permanente nela há parece ser o seu gesto, esse gesto que incessantemente se potencia e com o qual ela ergueu o seu pesado amor e o sustentou, muito para além de si. Esse gesto, não o conhecíamos antes, mas a voz não era a primeira vez que a ouvíamos. Era semelhante àquela outra que por vezes se pode levantar quando irrompe a noite de primavera, derramando-se sobre tudo aquilo que já não se pode ocultar. Como quando o rouxinol se dispõe a cantar: o que se levanta não é apenas um grito, mas também um silêncio que contém em si a noite insondável. Também nas palavras desta freira está a totalidade do sentimento, o que nele é dizível e o seu resto indizível. E também a sua voz é sem destino, como a do pássaro.
A sua vida é de uma tal linearidade, de uma tão ingénua singeleza, que nem das maiores fatalidades do seu amor nasce um destino. Ela sente-lhe a falta, anseia por ele, por tudo o que de intenso, exaltante, destruidor existe no destino, enquanto ainda tem esperança de vir a ser uma dessas mulheres que foram amadas com grandeza. Mas, para lá de tudo isso, acaba por se tornar cada vez mais a grande amante que admiramos.
De facto, que podemos nós fazer contra a admiração que nos assalta de cada vez que lemos estas cartas? Aquela torrente de censuras e esperanças, de desespero e arrebatamento abate-se repetidamente sobre nós com uma violência que nós não conseguimos deter. Sempre as mesmas perguntas, as mesmas acusações, as mesmas promessas. E são as habituais perguntas e acusações e promessas do amor, cuja leitura tantas vezes nos entediou. Mas aqui, quando emergem, trazem consigo um significado que ainda não tínhamos descoberto nelas.
Talvez já suspeitássemos, mas nunca nos tinha sido mostrado de forma tão evidente que a essência do amor não reside no que há de comum entre dois seres, mas em um obrigar o outro a transformar-se em qualquer outra coisa, qualquer coisa de infinitamente grande, o máximo que as suas forças permitam. As cartas da freira abandonada mostram que o cavaleiro de Chamilly soube eximir-se quase totalmente a essa imposição, se não aceitarmos que ele já fazia um grande esforço quando, durante alguns meses, foi o amante desta bem-aventurada que levava tão a sério o amor. Nessa altura, vaidoso e egoísta, ele fez algumas exigências ao sentimento dela, exigências a que ela correspondeu de forma tão perfeita e superou com tanto génio que ele se retirou, assustado. Este afastamento foi para ela algo de incompreensível, mas determinou também a tarefa que seria a sua. Abandonada, a sua natureza propôs-se recuperar e satisfazer todas as exigências que o amado, na sua superficialidade e na sua pressa, tinha esquecido. Quase se poderia dizer que a solidão foi necessária para fazer daquele amor, começado de forma tão apressada e leviana, qualquer coisa de tão perfeito.
Aquela alma capaz de sentir de forma tão grandiosa a felicidade já não pode descer abaixo do nível do incomensurável. A sua dor torna-se imensa, mas o seu amor cresce tanto que a supera: nada mais o poderá deter. E por fim Mariana fala de si ao amado nestes termos: "ele já não depende do modo como me tratas". Acabara de passar a última prova.
Estas cartas do século XVII permitiram preservar um amor trabalhado de forma incomparável. Como numa renda antiga, nelas os fios da dor e da solidão correm incompreensivelmente lado a lado para dar forma a flores, a um desconcertante caminho de flores.
Por que razão vieram estas cartas parar às nossas mãos? Para nos lembrar qual é esse ponto extremo a que pode chegar a vida de uma mulher? Para nos lembrar que ela transcende em muito, com a feliz e decidida pertinácia dos seus sentimentos, aqueles que aprendem tão lentamente a difícil arte do amor que continuam, ainda, a ter apenas como alternativa o serem principiantes ou diletantes.



Rosa...

para R. A. B.

Rose, oh reiner Widerspruch, Lust,
Niemandes Schlaf zu sein unter soviel
Lidern.


Rosa, oh, pura contradição, desejo
De ser o sono de ninguém sob tantas
pálpebras.

(De: Verstreute und nachgelassene Gedichte 1906-1926 / Poemas Dispersos e do Espólio, 1906-1926)


Rainer Maria Rilke
AS ELEGIAS DE DUÍNO


A Oitava Elegia

para Maria Gabriela Llansol









Com todos os olhos vê a criatura
o Aberto. Só os nossos olhos estão
como que invertidos, fechando-se sobre ela,
armadilhas cercando o seu passo livre.
O que fora de nós é, só o sabemos pela
face do animal: desde pequena, levamos
a criança a olhar para trás e obrigamo-la
a ver a Forma, não o Aberto, tão fundamente
inscrito na face do animal. Livre da morte.
Só nós a vemos; o animal livre
tem sempre o seu fim atrás de si;
Deus vai adiante, e quando o bicho corre,
corre para a eternidade, como correm as fontes.
Nós nunca temos, um dia que seja,
à nossa frente o espaço puro para onde as flores
sem cessar desabrocham. É sempre só mundo
e nunca o vazio sem negação: o que é puro,
o não-vigiado que se respira e
sem limite se sabe, e não se deseja. À criança,
perdida na entrega a isso, alguém
a sacode. Outros morrem e são isso.
Pois já perto da morte a morte não se vê, e olhamos
lá para fora com um olhar grande de bicho, talvez.
Os amantes, não fôra o Outro que lhes encobre
a vista, estão muito perto, e caem em espanto…
Como por engano, abre-se-lhes o espaço atrás
do Outro… Mas por cima dele
ninguém passa: é o mundo que está aí de novo.
Sempre de olhos postos na criação, nela
vemos apenas o reflexo do que é livre,
e que nós escurecemos; ou como um animal,
mudo, ergue os olhos e, sereno, nos trespassa.
Chama-se a isto destino: estar do outro lado
e nada mais, sempre do outro lado.

Tivesse o animal que a nós se dirige, soberano,
seguindo o seu caminho, a consciência
própria da nossa espécie - e arrastar-nos-ia
no seu caminhar. Mas o seu ser é-lhe infinito,
sem limite e sem um olhar que na sua condição
se detenha, puro, como o seu horizonte.
E onde nós vemos futuro, ele vê Tudo,
e a si nesse Tudo, e para sempre salvo.

E, no entanto, há no fogo desperto do animal
peso e preocupação de uma grande nostalgia.
Pois também sobre ele pesa sempre aquilo que a nós
tantas vezes nos assalta - a lembrança,
como se aquilo que se busca já tivesse estado
um dia mais perto, e sido mais fiel no seu abraço
infinitamente terno. Aqui, tudo é distância,
lá, era sopro. Depois da morada primeira,
a segunda parece-lhe híbrida e ventosa.
Ah, que feliz é a pequena criatura
que nunca deixa o seio que a gerou!
Ah, que sorte a do mosquito, que salta ainda dentro,
até quando celebra núpcias: pois seio é tudo.
E repara na instável segurança do pássaro,
a quem a origem dá um quase saber de ambas as coisas,
como se ele fosse uma alma dos Etruscos,
alma de um morto que um espaço recebeu,
mas deixando na tampa a sua figura jacente.
E como fica perplexo o ser que tem de voar,
tendo nascido de um seio! Parece assustado
consigo próprio, e, ao cortar o ar, é como a linha
de uma chávena estalada. É o rasto do morcego
riscando a porcelana da noite que cai.

E nós: espectadores, sempre, por toda a parte,
olhos postos em tudo isso, sem nunca disso sair!
A nós, esmaga-nos. Ordenamos tudo, e tudo se desfaz.
Voltamos a ordenar, e nós próprios nos desfazemos.

Quem é que assim nos inverteu a rota, para,
em tudo o que fazemos, assumirmos a atitude
de quem está de partida? Tal como ele, no alto
da última colina que lhe dá a ver uma vez mais
todo o seu vale, se volta, pára, se demora —
assim vivemos nós em permanente despedida.


PORQUÊ «POÇO»?

Este blog servirá apenas para ir dando a conhecer traduções de poesia inéditas (pelo menos em livro e em Portugal). O título, que prolonga no plano da prática o do meu livro sobre a «poética da tradução literária», saído em 2002, explica-se no texto da contracapa desse livro, e servirá hoje de «Editorial». Depois, o que aqui se lerá será apenas tradução de poesia.


«Todo o acto de traduzir remete para uma origem real e próxima – o original –, mas também para uma outra, mítica e metafórica, que tem sido vista, a um tempo, como pressuposto e como estigma de toda a tradução: o mito de Babel, a torre geradora de todas as diferenças entre as línguas e, com isso, da necessidade da tradução. Mas a metáfora da Torre, que implica uma noção de tradução fundada na diferença, não é a única. Em cada tradução escavamos «o poço de Babel» (a imagem vem de um aforismo de Kafka), e esse poço, uma espécie de descida (sem fim) aos infernos turvos da significação na língua-outra, é o caminho espiralado que teria como objectivo o reencontro com um estado pré-babélico e com aquele seu substrato adâmico que aproxima todas as línguas. A metáfora do poço, diferentemente da da torre, implica uma ideia de tradução como busca de uma profundidade, de raízes comuns, nos interstícios que ainda separam as línguas. A tradução nasce de um sonho insensato (o da Torre, com o seu preço e o seu fascínio) e faz-se como um trabalho arqueológico (a escavação de um poço). Mais do que um prolongamento ou uma extensão do outro, cada tradução seria então um passo na lenta implosão conjunta das línguas que coabitam o babélico edifício. Em última análise, um mergulho, uma morte que gera uma ressurreição, um acto de desejo, impossível e sempre repetido.»