19.1.07

Do livro das oferendas...









Wolfgang Bächler (1925– )



O fruto

para a Daniela O.


Ontem fui ao céu,
trouxe a lua nos braços
e cobri com ela as maçãs na mesa.
Só levemente se mexeu,
no seu mundo de luz e de tristeza.
Parti-a em pedaços.

Na taça azul apenas resta
do ouro a cinza da fogueira,
e as chagas na mão,
como despojos da noite de festa.
Na parede, ainda um leve clarão
gravado na madeira.


Raquel

para Ilda David'


«Gardez cet objet précieusement!»
disse Vincent van Gogh a Raquel,
a quem tinha oferecido a sua orelha.
Busquei em vão aquela «Maison de la tolérance»
número um da rue du Bout-d'Arles,
na qual, segundo a crónica, isso se passou.

Ao meio-dia encontrei Raquel.
Bebaixo dos ciprestes negros
de Aliscamp, dos campos elíseos,
estava sentada sobre a tampa partida
de um sarcófago romano.
Escaravelhos saíam-lhe dos dedos,
subiam-lhe pelas coxas nuas.

No seu regaço, imaculadamente branca,
estava uma enorme orelha,
de concha profunda e ensombrada.
Através das garras inclinadas das pestanas
os olhos tinham um brilho tão ardente
que as piteiras em frente começaram a arder.

Dei então pela fonte.
Removi a pedra do poço:
as ovelhas de Labão vieram beber.
Aberta contra o céu, e longe,
é a casa da tolerância,
e imortal Raquel,
que não quer ser consolada.


Evasão

para a Lou


Evadir-me
das cercas de palavras,
das cadeias de frases,
dos sistemas de pontos,
dos entre-parênteses,
das molduras das miragens narcisistas,
das vírgulas, dos traços de união
_____ a envolver desconexões
evasivas, diluídas _____
evadir-me
para a liberdade do silêncio.


Jornada

para a Teresa Belo


De manhã filtro a água.
Ao meio-dia corto o vento,
revolvo a terra,
ponho a mão no fogo,
enterro a cabeça na areia
e leio o jornal.

À tarde penduro nuvens
no céu demasiado azul
e deixo que chova e escrevo.
Não me é possível lançar a minha
escrita contra o Sol. Apenas posso
passar-lhe por baixo.

Quando não vem a minha companheira,
abro a porta da varanda, à noite, e trago
a Lua para o meu quarto.
E, como todos os que nela se refugiaram,
também eu não consigo
aquecer o frio astro.
Mas sempre me atraiu
o desafio do impossível.


Folhas caídas

para Vanda P.


Não me canso de ver cair as folhas.
Amo o momento da queda,
do cair dos ramos negros,
do pairar entre copa e raiz,
entre verão e inverno,
amo o vento que peneira as árvores,
até que larguem a última folha,
amo a queda sobre a terra.

E piso as folhas caídas,
como se fossem os meus manuscritos,
as folhas rasgadas dos meus livros,
calco-as, atravesso essa maré,
gozo a ouvi-las estalar e rumorejar,
atravesso esse mar de árvore para árvore,
abraço as formas nuas.

Não há já sinais de flores, de cogumelos.
Apenas folhas que cobrem o chão.
Nas árvores não se vê nenhum deus,
nem raparigas, nem crianças, nem animais.
Também os pássaros já voaram para o calor.
Apenas os ramos despidos se erguem
para o céu fechado,
os galhos nus, os pensamentos nus,
sem adereços e de contornos nítidos.