17.1.07


PORQUÊ «POÇO»?

Este blog servirá apenas para ir dando a conhecer traduções de poesia inéditas (pelo menos em livro e em Portugal). O título, que prolonga no plano da prática o do meu livro sobre a «poética da tradução literária», saído em 2002, explica-se no texto da contracapa desse livro, e servirá hoje de «Editorial». Depois, o que aqui se lerá será apenas tradução de poesia.


«Todo o acto de traduzir remete para uma origem real e próxima – o original –, mas também para uma outra, mítica e metafórica, que tem sido vista, a um tempo, como pressuposto e como estigma de toda a tradução: o mito de Babel, a torre geradora de todas as diferenças entre as línguas e, com isso, da necessidade da tradução. Mas a metáfora da Torre, que implica uma noção de tradução fundada na diferença, não é a única. Em cada tradução escavamos «o poço de Babel» (a imagem vem de um aforismo de Kafka), e esse poço, uma espécie de descida (sem fim) aos infernos turvos da significação na língua-outra, é o caminho espiralado que teria como objectivo o reencontro com um estado pré-babélico e com aquele seu substrato adâmico que aproxima todas as línguas. A metáfora do poço, diferentemente da da torre, implica uma ideia de tradução como busca de uma profundidade, de raízes comuns, nos interstícios que ainda separam as línguas. A tradução nasce de um sonho insensato (o da Torre, com o seu preço e o seu fascínio) e faz-se como um trabalho arqueológico (a escavação de um poço). Mais do que um prolongamento ou uma extensão do outro, cada tradução seria então um passo na lenta implosão conjunta das línguas que coabitam o babélico edifício. Em última análise, um mergulho, uma morte que gera uma ressurreição, um acto de desejo, impossível e sempre repetido.»