17.1.07


Rainer Maria Rilke

P O E M A S










O legente
(Der Lesende)


para Augusto Joaquim

Há muito tempo, desde que a tarde se ouvia
Com o murmúrio da chuva nas janelas, eu lia.
O vento lá fora, já o não escutava:
O meu livro pesava.
Como se fossem rostos, as folhas sob o meu olhar
Escurecem de tanto pensamento
E, envolvendo a leitura, avolumava o tempo.
De súbito desce sobre as páginas um fulgor,
E em vez de confusas palavras - um tormento -
Há em todas só... noite, noite só, a nascer.
Não olho ainda para fora, mas já as longas
Linhas se desfazem, e as palavras rolam
Do fio que as liga, vão para onde querem...
E então eu sei que há céus sem fim
Sobre o esplendor e a plenitude dos jardins;
O sol teve de nascer mais uma vez. -
E agora é verão e noite o horizonte:
O que andava disperso em grupos se une,
Poucos, e há gente pelos caminhos escuros,
E longe, estranhamente, como se outro sentido
Tivesse, ouve-se o pouco que ainda acontece.

E ao levantar do livro o olhar agora,
Nada me é estranho, tudo tem grandeza.
O que aqui dentro eu vivo, está lá fora,
E aqui e lá não tem limite o mundo;
Só eu me teço mais com tudo isso,
Quando os meus olhos se ajustam às coisas
E à grave singeleza dessa gente -
O mundo cresce então, num golpe de asa.
O céu inteiro o abraça, é o que se sente:
E a estrela d' alba é como a última casa.

(De: Das Buch der Bilder / O Livro das Imagens, I/1)


Torso arcaico de Apolo

para Mauro A.

Nunca vista, a cabeça é um vazio
Com olhos cavos, a amadurecer.
O torso, esse é um candelabro a arder
Em que o olhar, suspenso de um desvio,

Mantém o brilho. Senão, não te cegava
Aquela proa do peito, nem o aviso
Leve das coxas levaria o sorriso
Àquele centro que a semente guardava.

Senão, seria pedra informe e ausente
Sob os ombros caídos, transparente,
Sem o brilho da pele de fera ferida;

Não sairia de si, estrela em fulgor:
Tudo nele vê, te está a olhar.
Tens de dar novo rumo à tua vida.

(De: Der Neuen Gedichte anderer Teil / Segunda Parte d' Os Novos Poemas, 1908



As cinco cartas de Mariana Alcoforado

para V.

Não nos faltam, nem notícias nem rumores da vida dos sentimentos. Mas só os vemos naqueles breves momentos em que eles emergem do rio do destino, ou — com um pouco mais de serenidade — quando eles vão vogando à superfície, mortos, deitados de lado.
Não terá sido isso que proporcionou às Cartas Portuguesas a sua reputação ao longo dos tempos? O facto de nelas acontecer um grande sentimento, como que por milagre, fora do destino, e visível, visível até muito longe, inesquecível?
Quando é que alguém terá tido oportunidade de ver assim crescer o amor? Onde é que já existiu um sentimento com tal força e entrega que se não tivesse logo afundado, transformado, ou que, regressando sempre com novas máscaras, não nos tivesse confundido? A arte das mais célebres mulheres amadas consistia precisamente em manter os seus sentimentos abaixo da linha de água; os seus retratos trazem por vezes até nós aquele sorriso estranhamente fechado, espécie de lastro para os sentimentos emergentes, para os obrigar a afundar-se e descer até ao fundo do destino.
Como deve ter sido diferente o sorriso de Mariana Alcoforado! Não temos memória dele e também não sentimos necessidade de ver o seu rosto, porque o que de mais permanente nela há parece ser o seu gesto, esse gesto que incessantemente se potencia e com o qual ela ergueu o seu pesado amor e o sustentou, muito para além de si. Esse gesto, não o conhecíamos antes, mas a voz não era a primeira vez que a ouvíamos. Era semelhante àquela outra que por vezes se pode levantar quando irrompe a noite de primavera, derramando-se sobre tudo aquilo que já não se pode ocultar. Como quando o rouxinol se dispõe a cantar: o que se levanta não é apenas um grito, mas também um silêncio que contém em si a noite insondável. Também nas palavras desta freira está a totalidade do sentimento, o que nele é dizível e o seu resto indizível. E também a sua voz é sem destino, como a do pássaro.
A sua vida é de uma tal linearidade, de uma tão ingénua singeleza, que nem das maiores fatalidades do seu amor nasce um destino. Ela sente-lhe a falta, anseia por ele, por tudo o que de intenso, exaltante, destruidor existe no destino, enquanto ainda tem esperança de vir a ser uma dessas mulheres que foram amadas com grandeza. Mas, para lá de tudo isso, acaba por se tornar cada vez mais a grande amante que admiramos.
De facto, que podemos nós fazer contra a admiração que nos assalta de cada vez que lemos estas cartas? Aquela torrente de censuras e esperanças, de desespero e arrebatamento abate-se repetidamente sobre nós com uma violência que nós não conseguimos deter. Sempre as mesmas perguntas, as mesmas acusações, as mesmas promessas. E são as habituais perguntas e acusações e promessas do amor, cuja leitura tantas vezes nos entediou. Mas aqui, quando emergem, trazem consigo um significado que ainda não tínhamos descoberto nelas.
Talvez já suspeitássemos, mas nunca nos tinha sido mostrado de forma tão evidente que a essência do amor não reside no que há de comum entre dois seres, mas em um obrigar o outro a transformar-se em qualquer outra coisa, qualquer coisa de infinitamente grande, o máximo que as suas forças permitam. As cartas da freira abandonada mostram que o cavaleiro de Chamilly soube eximir-se quase totalmente a essa imposição, se não aceitarmos que ele já fazia um grande esforço quando, durante alguns meses, foi o amante desta bem-aventurada que levava tão a sério o amor. Nessa altura, vaidoso e egoísta, ele fez algumas exigências ao sentimento dela, exigências a que ela correspondeu de forma tão perfeita e superou com tanto génio que ele se retirou, assustado. Este afastamento foi para ela algo de incompreensível, mas determinou também a tarefa que seria a sua. Abandonada, a sua natureza propôs-se recuperar e satisfazer todas as exigências que o amado, na sua superficialidade e na sua pressa, tinha esquecido. Quase se poderia dizer que a solidão foi necessária para fazer daquele amor, começado de forma tão apressada e leviana, qualquer coisa de tão perfeito.
Aquela alma capaz de sentir de forma tão grandiosa a felicidade já não pode descer abaixo do nível do incomensurável. A sua dor torna-se imensa, mas o seu amor cresce tanto que a supera: nada mais o poderá deter. E por fim Mariana fala de si ao amado nestes termos: "ele já não depende do modo como me tratas". Acabara de passar a última prova.
Estas cartas do século XVII permitiram preservar um amor trabalhado de forma incomparável. Como numa renda antiga, nelas os fios da dor e da solidão correm incompreensivelmente lado a lado para dar forma a flores, a um desconcertante caminho de flores.
Por que razão vieram estas cartas parar às nossas mãos? Para nos lembrar qual é esse ponto extremo a que pode chegar a vida de uma mulher? Para nos lembrar que ela transcende em muito, com a feliz e decidida pertinácia dos seus sentimentos, aqueles que aprendem tão lentamente a difícil arte do amor que continuam, ainda, a ter apenas como alternativa o serem principiantes ou diletantes.



Rosa...

para R. A. B.

Rose, oh reiner Widerspruch, Lust,
Niemandes Schlaf zu sein unter soviel
Lidern.


Rosa, oh, pura contradição, desejo
De ser o sono de ninguém sob tantas
pálpebras.

(De: Verstreute und nachgelassene Gedichte 1906-1926 / Poemas Dispersos e do Espólio, 1906-1926)