17.1.07


Rainer Maria Rilke
AS ELEGIAS DE DUÍNO


A Oitava Elegia

para Maria Gabriela Llansol









Com todos os olhos vê a criatura
o Aberto. Só os nossos olhos estão
como que invertidos, fechando-se sobre ela,
armadilhas cercando o seu passo livre.
O que fora de nós é, só o sabemos pela
face do animal: desde pequena, levamos
a criança a olhar para trás e obrigamo-la
a ver a Forma, não o Aberto, tão fundamente
inscrito na face do animal. Livre da morte.
Só nós a vemos; o animal livre
tem sempre o seu fim atrás de si;
Deus vai adiante, e quando o bicho corre,
corre para a eternidade, como correm as fontes.
Nós nunca temos, um dia que seja,
à nossa frente o espaço puro para onde as flores
sem cessar desabrocham. É sempre só mundo
e nunca o vazio sem negação: o que é puro,
o não-vigiado que se respira e
sem limite se sabe, e não se deseja. À criança,
perdida na entrega a isso, alguém
a sacode. Outros morrem e são isso.
Pois já perto da morte a morte não se vê, e olhamos
lá para fora com um olhar grande de bicho, talvez.
Os amantes, não fôra o Outro que lhes encobre
a vista, estão muito perto, e caem em espanto…
Como por engano, abre-se-lhes o espaço atrás
do Outro… Mas por cima dele
ninguém passa: é o mundo que está aí de novo.
Sempre de olhos postos na criação, nela
vemos apenas o reflexo do que é livre,
e que nós escurecemos; ou como um animal,
mudo, ergue os olhos e, sereno, nos trespassa.
Chama-se a isto destino: estar do outro lado
e nada mais, sempre do outro lado.

Tivesse o animal que a nós se dirige, soberano,
seguindo o seu caminho, a consciência
própria da nossa espécie - e arrastar-nos-ia
no seu caminhar. Mas o seu ser é-lhe infinito,
sem limite e sem um olhar que na sua condição
se detenha, puro, como o seu horizonte.
E onde nós vemos futuro, ele vê Tudo,
e a si nesse Tudo, e para sempre salvo.

E, no entanto, há no fogo desperto do animal
peso e preocupação de uma grande nostalgia.
Pois também sobre ele pesa sempre aquilo que a nós
tantas vezes nos assalta - a lembrança,
como se aquilo que se busca já tivesse estado
um dia mais perto, e sido mais fiel no seu abraço
infinitamente terno. Aqui, tudo é distância,
lá, era sopro. Depois da morada primeira,
a segunda parece-lhe híbrida e ventosa.
Ah, que feliz é a pequena criatura
que nunca deixa o seio que a gerou!
Ah, que sorte a do mosquito, que salta ainda dentro,
até quando celebra núpcias: pois seio é tudo.
E repara na instável segurança do pássaro,
a quem a origem dá um quase saber de ambas as coisas,
como se ele fosse uma alma dos Etruscos,
alma de um morto que um espaço recebeu,
mas deixando na tampa a sua figura jacente.
E como fica perplexo o ser que tem de voar,
tendo nascido de um seio! Parece assustado
consigo próprio, e, ao cortar o ar, é como a linha
de uma chávena estalada. É o rasto do morcego
riscando a porcelana da noite que cai.

E nós: espectadores, sempre, por toda a parte,
olhos postos em tudo isso, sem nunca disso sair!
A nós, esmaga-nos. Ordenamos tudo, e tudo se desfaz.
Voltamos a ordenar, e nós próprios nos desfazemos.

Quem é que assim nos inverteu a rota, para,
em tudo o que fazemos, assumirmos a atitude
de quem está de partida? Tal como ele, no alto
da última colina que lhe dá a ver uma vez mais
todo o seu vale, se volta, pára, se demora —
assim vivemos nós em permanente despedida.