22.2.07

Do Livro das Oferendas...

Stefan George (1868-1933)

A palavra

para o Jorge L.


Trouxe para a minha terra, até à fronteira,
Sonhos, prodígios de terra estrangeira

Esperei que a sombria Norna aparecesse
E do fundo do seu poço as nomeasse –

Só então os senti minha pertença
E toda a Marca se encheu de luz intensa...

Um dia volto de viagem proveitosa
Com uma jóia fina e preciosa.

Ela busca, rebusca, e diz por fim:
«Neste meu poço não dorme nada assim.»

No mesmo instante fiquei de mão vazia
E minha terra sem o tesouro que trazia...

E aprendi a renúncia, a lição triste:
Onde falta a palavra, a coisa não existe.

11.2.07

Do Livro das Oferendas...

Erich Fried (1929-1988)

O que é

para a Mafalda


É disparate
diz a razão
É o que é
diz o amor

É um desastre
diz o calculismo
É só sofrimento
diz o medo
É um beco sem saída
diz o discernimento
É o que é
diz o amor

É ridículo
diz o orgulho
É irresponsável
diz a circunspecção
É impossível
diz a experiência
É o que é
diz o amor

Do Livro das Oferendas...

Hans Magnus Enzensberger (1929- )



Rondel

para o Pedro Eiras


Falar é fácil.

Mas não podemos comer palavras.
Então coze pão.
Cozer pão é difícil.
Então faz-te padeiro.

Mas num pão não se pode viver.
Então constrói casas.
Construir casas é difícil.
Então faz-te pedreiro.

Mas no cimo de uma montanha
Não se podem construir casas.
Então move a montanha.
Mover montanhas é difícil.
Então faz-te profeta.

Mas os pensamentos não se ouvem.
Então fala.
Falar é difícil.
Então torna-te no que és

e continua a murmurar para os teus botões,
criatura inútil.

7.2.07

Do Livro das Oferendas...

Richard Wagner (1813-1883)







Sonhos
(Estudo para Tristão e Isolda)

para a Lourdinha

Que sonhos são estes, estranhos,
Que a alma me têm tomada,
Sem se afundarem nos escolhos
Do esquecimento e do nada?

Sonhos que cada momento,
Cada dia, mais florescem.
E com seu celeste encanto
O espírito me atravessam.

Sonhos belos que nos entram
Pela alma, cheios de glória,
E eterno quadro aí pintam:
Todo olvido, só memória!

Sonhos como um sol de Abril
Que os botões beija na neve,
Para que em delícias mil
O novo dia os celebre,

P'ra que cresçam e floresçam,
Em sonhos esparzindo odor,
E no teu peito feneçam
Antes de à campa descer.



Na estufa
(Estudo para Tristão e Isolda)

para Lurdes M.

Folhagens abobadadas,
com esmeraldas e dosséis,
Filhas de terras perdidas,
Dizei-me: por que chorais?

Inclinais os ramos, mudas,
Traçais figuras nos ares,
Da dor mudas testemunhas,
Soltam-se os doces odores.

Para o longe os braços estendeis
Em desejo e nostalgia,
E em delírio abraçais
Morta solidão vazia.

Pobre planta! Sei como é,
Temos o mesmo destino:
Há brilho e luz, mas não é
Deste mundo o nosso reino!

E quando o sol se despede
Do dia oco, sem sombra,
Quem sofre esconde-se e pede
O silêncio e a penumbra.

Desce a calma e, estremecendo,
Um ar cruza o escuro; e se olhas
Vês gotas cheias, pendendo
Da orla verde das folhas.

Do Livro das Oferendas...

Hermann Hesse (1877-1962)

Setembro
(Quatro Últimas Canções, II)

para a Daniela G.

Chora o jardim.
A chuva cai sobre o último botão.
Estremece o Verão,
Caminhando em silêncio para o fim.

Goteja ouro folha a folha
Da acácia de nobre porte.
Sorri o Verão, e exausto olha
Aquele esplendor de morte.

Pára junto ao roseiral,
Sonha com o fim aprazado.
Corre as cortinas no umbral
Do seu fundo olhar cansado.



Hora de son(h)o
(Quatro Últimas Canções, IV)

para o Sr. Quirino

E o dia caiu, cansou,
E a nossa saudade ardente
Recebe as estrelas da noite
Como criança dormente.

Ficam os trabalhos esquecidos,
Esquece a fronte o pensamento,
Todos os nossos sentidos
Se afundam num sonho lento.

E a nossa alma despida
Solta as asas contra o vento,
Vive mil vezes a vida
Pela mágica noite adentro.



Klingsohr fala à «Sombra»
(De O Último Verão de Klingsohr)

para Piedade B.

De noite o carrocel arrefeceu,
Esvaiu-se a música, a dança morreu,
Morreu do vinho a mesa carmesim.
E nós a olhar, cansados de beber,
E o vento quente p'lo portão a entrar,
E a morte no meio do jardim.

E saímos os dois, apartados,
Buscando abrigo para a noite, calados,
E a alegria chegava ao fim.
E desde então oiço, ou adivinho,
Esse vento, e em cada portão, cada caminho,
A morte ainda espera por mim.