1.3.07

Do Livro das Oferendas...

Friedrich Hölderlin (1770-1843)



Devaneio ao cair da tarde

para António S.


Sentado à porta da cabana, na paz da sombra,
O homem do arado, frugal; o lume arde-lhe na lareira.
Hospitaleiros soam ao viandante na
Tranquila aldeia os sinos da tarde.

Estarão também a regressar ao porto os barqueiros agora,
Em cidades distantes vai-se esvaindo, alegre,
O bulício rumoroso da feira; na paz da latada
Brilha a ceia comum aos olhos dos amigos.

E eu, para onde irei? Vivem os mortais
Da jorna e do trabalho; tudo se alegra
Na alternância de esforço e descanso; porque é que
Só a mim me não dorme no peito nunca o espinho?

No céu, à tardinha, desabrocha uma primavera;
Florescem rosas sem fim e parece tranquilo
O mundo de oiro. Ah, levai-me para aí,
Nuvens de púrpura! E que lá em cima

Em luz e ar tenham fim meu amor e minha dor!
Mas foge o encanto já, como que assustado
Por insensata súplica; escurece, e solitário
Sob o arco do céu, como sempre, eu -

Desce então, sono suave! É de mais o que pede
O coração. Mas tu, juventude, acabas por esfriar,
Tu, sempre inquieta, sonhadora!
Serena e em paz chega finalmente a velhice.



Os carvalhos

para Carlos M.


Dos jardins venho até vós, filhos da montanha!
Dos jardins onde, paciente e pacata, a natureza vive
Tratando, sendo tratada, em companhia dos humanos diligentes.
Mas vós, vós erguei-vos, magníficos, como um povo de titãs
No mundo mais manso, a vós unicamente pertenceis, e ao céu
Que vos deu sustento e criou, e à terra de onde nascestes.
Nenhum de vós alguma vez foi à escola dos humanos:
Felizes e livres irrompeis da poderosa raiz,
Juntais-vos para dominar, como a águia faz à presa,
O espaço com braços fortes, e em direcção às nuvens
Levantais, em esplendor e grandeza, a fronde luminosa.
Um mundo é cada um de vós, como as estrelas do céu
Viveis, cada um um deus, em comunidade livre.
Pudesse eu suportar a servidão, jamais invejaria
Esta floresta, e acomodava-me à vida em sociedade.
Não me prendesse já à vida em sociedade o coração
Que se não liberta do amor, e entre vós preferia morar!



Diotima

para a Cynthia


Vem e acalma, tu que já apaziguaste os elementos,
Glória da musa celestial, o caos dos tempos,
Põe ordem nesta luta com sons de paz dos céus
Até que no peito do mortal se una o que se apartou,
Até que a velha natureza dos homens, calma e grande,
Se erga, poderosa e serena, do tempo impaciente.
Entra no coração carente do povo, beleza viva!
Regressa à mesa hospitaleira e aos templos!
Pois Diotima vive, como as frágeis flores do inverno;
Seu espírito é rico, mas não deixa de buscar o Sol.
Mas o Sol do espírito, o mundo mais belo, afundou-se
E na noite gélida só se ouvem os ventos em fúria.





Mnemosina
(3a. versão)

para Manuel R.


Maduros estão, mergulhados em fogo, cozidos
Os frutos da terra provados, e uma lei diz
Que tudo neles deve entrar, quais serpentes,
Profeticamente, sonhando nas
Colinas do céu. E muita coisa,
Como aos ombros uma
Carga de lenha, deve
Ser preservada. Mas traiçoeiros são
Os caminhos. Em verdade, desavindos
Como cavalos andam os elementos
Prisioneiros, e antigas
Leis da Terra. E sempre
Esta ânsia para o desmedido. Muita coisa porém deve
Ser preservada. E faz falta a fidelidade.
Mas nós nem para diante nem para trás
Queremos olhar. Deixar-nos embalar, isso sim, como
Lago em barco a baloiçar.

Mas, e o que nos é querido? A luz do sol
Vemos no chão, e pó seco
E as sombras dos bosques, familiares, e floresce
Nos telhados o fumo, perto da antiga coroa
Das torres, em paz; bons são então,
Se alguma coisa do céu, a eles se opondo,
Nos feriu a alma, os sinais dos dias.
Pois a neve, como flores de Maio
Símbolizando, onde quer que ela esteja,
A nobreza de ânimo, espalha o seu brilho
Pelo prado verde
Dos Alpes, até meio, lá onde, falando da cruz
Que um dia no caminho foi posta
Para os mortos, na estrada alta,
Um viandante segue, irado,
Cheio de longínquas memórias,
Com o outro; mas isto, o que é?

Junto à figueira me morreu
O meu Aquiles
E Ajax jaz
Perto das grutas do mar,
Dos riachos vizinhos do Escamandro.
O vento a varrer-lhe a fronte outrora, seguindo
O imutável costume da hierática
Salamina, em terra estranha, o grande
Ajax se deu à morte,
E também Pátroclo, mas usando o arnês do rei. E outros
Ainda, muitos, morreram. E junto ao Citéron
Ficava Eleutere, a cidade de Mnemosina. Também a ela,
Quando seu manto o deus depôs, os cabelos lhe soltou depois
Aquele que rege o declínio do dia. Pois os deuses ficam
Agastados quando alguém, para aliviar
A alma, em si não tem mão, mas assim tem de ser;
No mesmo excesso cai o luto.



Empédocles

para Paulo S.


Buscas, buscas a vida, e brota e fulge
Das profundezas da Terra para ti divino fogo,
E tu, num terrífico anseio, lanças-te
No abismo, nas chamas do Etna.

Assim, em vinho dissolveu pérolas a soberba
Da rainha*. Que o fizesse! Bom seria se tu,
Ó poeta, não tivesses sacrificado
A tua riqueza ao cálice de fogo!

Mas sagrado és para mim, como a força da terra
Que te levou, em sacrifício indómito!
Seguir-te-ia eu também para o abismo,
Ao herói, se me não tolhesse o amor.

__________
* Cleópatra (Plínio, História Natural IX, 119)





O que é Deus?…

para José Augusto M.


O que é Deus? Desconhecido, e contudo,
Cheio de sinais dele está o rosto
Do céu. Os relâmpagos não são
De um Deus a ira? Quanto mais
Invisível, mais se dá a ver no que é estranho.
Mas o trovão, de um Deus é a glória. O amor
Da imortalidade a um Deus pertence,
Como o que é nosso.



E pouco saber...

para o José Carlos


E pouco saber, mas alegria muita,
É dado aos mortais,

Porquê, ó belo Sol, me não bastas tu,
Botão das minhas flores, no dia de Maio?
Que sei eu daquilo que é mais alto?

Ah, fosse eu como são as crianças!
Para, como os rouxinóis, sem cuidados cantar
Uma canção que diga o meu prazer!



Porque em nenhum lugar...

para o Manuel G.


...
Porque em nenhum lugar ele tem casa.
Nenhum sinal
O prende.
Nem sempre

Há vaso que o contenha.
...