18.3.07

Do Livro das Oferendas...

Hadewijch de Antuérpia
(1ª metade do século XIII)


Poemas Espirituais

para a Cinara


Nº 2

I
Muito em breve subirá
a seiva das raízes;
longe e perto, verdes
ficarão prados e jardins.
Não nos engana o nosso pressentimento:
basta ouvir o alegre canto dos pássaros.
Quem agora sair para os duelos do Amor,
quem não se poupar,
em breve triunfará.

II
Quem se entregar todo ao supremo Amor,
por tudo será recompensado.
Amor, imagem da Rainha Virgem,
a muitos enche o peito de coragem.
O iluminado segue todas as suas leis,
junta todos os pensamentos e forças
– para o Amor, é o sinal da sua acção –
e por mais arisco que ele seja,
ele o conquistará.

III
Mas Amor é quem domina, e a prova é
que ele desperta toda a nobreza interior,
é seu sustentáculo, só dele nasce a fidelidade
onde todos vós, no serviço de Amor, ides buscar forças.
Ele é a essência da verdadeira felicidade
que espanta toda a desgraça.
Peço-lhe que nos conceda a sua graça,
para que a si atraia a juventude
e esta se nos confie em Amor.

IV
Amor é a quinta-essência de todo o prazer,
o mais forte impulso.
Quem ama, a si chama o mais pesado destino
antes mesmo de reconhecer a natureza do Amor.
Antes de o receber no Amor,
ele passa por todos os altos e baixos;
sem descanso fica
até que Amor em amor o prende
e lhe ensina os seus prazeres.

V
Quem arde em desejo de Amor
ficará livre de toda a aflição;
é imortal quem for tocado pelo Amor
– seu nome, «A–mor», significa: liberto da morte –,
se cumprir o que manda Amor
e tratar de o manter.
Ele é a abundância de tudo,
pão da vida é o amor,
e supremo gozo.

VI
Mas agora as minhas novas canções
transformaram-se em grande lamento,
as canções que tanto cantei
para louvar a grandeza do Amor.
Não apelei bastante às minhas forças,
encontro-me em grande aflição
por não estar já de posse plena
das insuperáveis forças,
e por ela vencida desfruto do amor.

VII
Vou ter, sem dúvida, de deixar por cantar
o verdadeiro amor nos dias que me restam,
deixar o canto e a poesia
que me faziam feliz.
A sua lição ensinou-me
o verdadeiro amor,
e enquanto agora sofro,
ferida na alma,
murcho e envelheço.

VIII
De tal modo me esvaziou a coita de amor,
que para mais nada sirvo;
ele, que primeiro à sua escola me levou,
onde absorvi o seu mistério,
e que desde então de novo me roubou,
escondendo de mim o essencial.
Mas tudo isso aceito,
pois tudo o que dele recebi
era pura verdade.

IX
Se Amor me desse dias de nova felicidade,
em vez da velha tristeza dos dias!
Calaria então
as minhas muitas queixas,
e sem o amor viveria sempre,
em vez de em tristeza, em insegurança.
Eis a minha profissão de fé:
Que Amor sobre mim decida em absoluto,
que seja ele a força do meu destino.

X
É insuportável o meu sofrimento
por saber-me fora do círculo de Amor.
Mas Amor ouve os que o conhecem, os que se mantêm a seu serviço,
e na sorte como na desgraça
guardam na alma a sua lição.
Aqueles que sem vacilar o recebem
e a quem Amor em amor abraça,
permanecem, em verdade, no seu esplendor.

XI
Tal como a bela rosa, que, orvalhada,
floresce entre os espinhos, assim também
quem Amor serve atravessará a falsidade
e, confiante, vencerá tempestades.
Sem barreiras e sem abalos
crescerá por cima de todos os obstáculos;
É por isso que as almas indecisas
abdicam depressa do serviço de Amor,
enquanto as que ele preenche se lhe entregam livremente.

Quem quiser conquistar Amor,
terá de deixar os falsos mestres;
se as suas palavras no momento atraem,
depressa percebemos
como são enganadoras.



Poemas dispersos / Mengeldichten

para a Claire


Nº 17











Não estou nem magoada nem perturbada a ponto de não poder escrever,
uma vez que Aquele que vive é pródigo em nos conceder os seus dons

e, pondo em nós uma nova claridade, quer instruir-nos.
Louvado seja em todos os tempos e em todas as coisas!

Aquilo que o homem apreende na consciência nua da suprema contemplação é seguramente grande
– e é nada quando comparo o que apreendemos com o que nos falta.

É nesta falta que deve mergulhar o nosso desejo:
tudo o resto é, por natureza, mesquinho.

Aqueles cujo desejo penetra sempre mais fundo no alto conhecimento sem palavras do amor puro,
acham que essa falta é sempre maior

à medida que o seu conhecimento se renova, sem moda, nas claras trevas,
na presença de ausência.

Ele isola-se na eternidade sem margens,
dilata-se, salvo pela Unidade que o absorve,

a inteligência dos tranquilos desejos,
votada à perda total na totalidade do imenso:

e aí uma coisa simples lhe é revelada,
não podendo sê-lo – o Nada puro e nu.

É desta nudez que se alimentam os fortes,
a um tempo ricos na sua intuição e privados do inatingível.

Entre aquilo que se atinge e aquilo a que não chegamos não existe medida comum,
nem é possível qualquer comparação:

é por isso que eles se apressam, aqueles que entreviram essa verdade no caminho obscuro,
não traçado, não assinalado, todo interior.

Nesta falta encontram supremo prémio, ela é a sua suprema alegria.
E saibam que sobre isso nada se pode dizer,

a não ser que é necessário afastar o tumulto das razões, das formas e das imagens,
se quisermos, a partir do interior, não compreender, mas conhecer isso.

Aqueles que não se dispersam por outras obras, para além da que aqui foi descrita,
regressam à unidade no seu princípio,

e esta unidade que possuem é tal
que nada de semelhante se pode fazer aqui em baixo com dois seres.

Na intimidade do Uno, essas almas são puras e nuas interiormente,
sem imagem nem figura,

como que libertas do tempo, incriadas,
afastadas dos seus limites na silenciosa latitude.

E neste ponto me suspendo, não encontrando já nem fim, nem começo,
nem comparação que possa justificar as palavras.

Abandono o tema àqqueles que o vivem:
tão puro pensamento feriria a língua de quem disso quisesse falar.